“Hacker” português é acusado de ao menos 90 crimes relacionados ao escândalo Football Leaks. Pinto também está ligado ao vazamento de documentos que vinculariam a empresária Isabel dos Santos a irregularidades.
O pirata informático Rui Pinto prestará esclarecimentos até novembro sobre pelo menos 90 crimes dos quais é acusado no âmbito do escândalo Football Leaks – que compreende a divulgação numa plataforma eletrónica, a partir de 2015, de milhares de documentos confidenciais de contratos, transferências e alegados esquemas ilegais no futebol em diversos países.
A primeira sessão do julgamento decorre nesta sexta-feira (04.09) no Campus da Justiça, em Lisboa. Entre outros crimes, o jovem de 31 anos é acusado pelo Ministério Público português de acesso indevido a documentos, violação de correspondência, sabotagem informática e tentativa de extorsão.
Rui Pinto também é o responsável pelo megavazamento de documento no âmbito do Luanda Leaks, uma investigação jornalística internacional que expôs os esquemas alegadamente fraudulentos da empresária Isabel dos Santos, filha do ex-Presidente de Angola José Eduardo dos Santos.
As reportagens divulgadas pelo Consórcio Internacional de Jornalistas de Investigação (ICIJ) denunciaram casos de alegada má gestão, desvio de fundos e branqueamento de capitais que envolveriam a empresária. Isabel dos Santos teve bens arrestados em Portugal e Angola.
Estatuto de denunciante
O “hacker” está detido em Portugal há quase um ano e meio. Desde abril, ele aguarda julgamento em prisão domiciliária, em casas disponibilizadas pela Polícia Judiciária. Pinto está proibido, entre outras medidas, de aceder à internet.
No meio político e da justiça portuguesa reinam divergências sobre a prisão de Rui Pinto. A defesa sustenta que o pirata informático teria o “estatuto de denunciante” – ou seja, contribuiria para apurar a verdade em vários inquéritos iniciados na Europa e seria portanto um colaborador da justiça.
William Bourdon – presidente da Plataforma de Proteção para Denunciantes em África e advogado de Rui Pinto – diz ter recebido o material do caso Luanda Leaks do “hacker” entre o final de 2018 e o início de 2019. O material teria informações do Football Leaks e ficheiros aleatórios de pessoas ligadas a Isabel dos Santos.
Em entrevista à DW África, Bourdon vinculou os dois escândalos que Rui Pinto é protagonista, salientando que há uma comunidade com interesses comuns, composta por pessoas que fazem parte do mundo de Isabel dos Santos e da criminalidade ligada à indústria do futebol em Portugal.
“O disco que eu compartilhei com o consórcio de jornalistas, também comparilhei com procuradores. O que eu fiz faz parte da minha obrigação como advogado de defender o meu cliente o máximo que eu possa. Defendê-lo nesta situação absurda de ele estar detido. Ao mesmo tempo, os corruptos ligados ao ‘Football Leaks’ e ligados ao ‘Luanda Leaks’ continuam tranquilos”, disse Bourdon.
“Lavandaria das elites”
Rui Pinto terá chegado a um acordo com as autoridades judiciais portuguesas para a partilha de informações relacionadas com os dois escândalos.
O jurista Rui Verde considera que, a serem comprovados os crimes dos quais o “hacker” é acusado, há uma série de artigos no Código Penal português que podem justificar e excluir a culpa ou a ilegalidade da sua conduta.
“Mesmo que a pessoa tenha praticado determinados fatos pode haver razões que justifiquem, e essas razões serão avaliadas pelos juízes”, considera Verde. Para o jurista português, a defesa deverá “justificar os comportamentos de Rui Pinto dentro da lei”.
Numa entrevista recente à revista alemana Der Spiegel, o pirata informático disse que é “repugnante” a forma com a qual “Portugal se tornou na lavandaria das elites angolanas”.
Foi na sequência de revelações feitas pelo ICIJ que o Ministério Público português decidiu analisar com mais atenção as informações no âmbito do Luanda Leaks, dando seguimento aos pedidos de cooperação judiciária internacional, nomeadamente da Procuradoria-Geral da República de Angola.
O centro operacional
Verde considera que haja uma sistematização e uma divulgação mais internacional desses temas, não propriamente uma novidade.
O jurista espera que as investigações esclareçam questões ainda um tanto opacas, como a hipótese levantada por Rui Pinto de que a família de Isabel dos Santos é a proprietária da Herdade da Torre Bela – uma propriedade murada de 3 mil hectares nas proximidades de Lisboa, considerada uma das maiores do género na Europa.
“Tinha muito interesse também em ver as ligações que o clã dos Santos criou no Porto. À medida que se vai investigando parece que o Porto – e não Lisboa curiosamente – é o centro operacional ou foi o centro operacional das atividades de Isabel dos Santos, das suas ligações à política, às finanças e das suas ligações técnicas”, sugere o jurista.
Rui Verde considera, por outro lado, que o caso é interessante porque coloca em questão um dos temas essenciais do Estado moderno: “A captura do Estado por oligarquias, lobbies e grupos mais ou menos criminosas. Está aqui uma necessidade de criar novos mecanismos de defesa do Estado. Esta é uma das formas alternativas de se manter a democracia”.
Fonte: DW