Há uma fábrica de pólvora no meio de um bairro residêncial em Luanda

Fonte: Jornal de Angola

Simão de Sousa Pereira Inglês, comandante para os Objectivos Estratégicos da Polícia Nacional, teme que a situação vivida no bairro “Pólvora”, envolto numa fábrica do produto, possa dar lugar a um incidente semelhante ao ocorrido em Beirute, no Líbano.

Encaixado entre os municípios do Cazenga e de Cacuaco, existe um bairro, “Pólvora”, com centenas de casas ao redor de uma fábrica do produto, denominada Santa Barbara

O comandante mostra-se preocupado com o facto de a fábrica de pólvora Santa Barbara, que trabalha com material explosivo, estar rodeada de residências. Em declarações exclusivas ao Jornal de Angola, ontem, no final de uma visita à sede da empresa Edições Novembro, no âmbito de um programa de constatação da realidade das firmas sob a vigilância do organismo que dirige, disse ser urgente que se corrija a falha, de modo a evitar-se que Angola venha, um dia, a viver a mesma situação ocorrida em Beirute, no Líbano.

“Aí, se mete um fósforo, aquele bairro todo do Kikolo desaparece”, alertou o comandante, tendo acrescentado que “aquilo é um barril autêntico de pólvora”. Simão de Sousa Pereira Inglês, que se encontra nas funções desde Fevereiro, ressaltou que, no passado, a fábrica estava a quilómetros do centro da capital. O comissário sugere, no mínimo, uma distância de 100 metros entre as casas e a fábrica de pólvora.

A realidade

Após ouvir a preocupação do comandante da Unidade de Protecção de Objectivos Estratégicos da Polícia Nacional, o Jornal de Angola foi ao local, para constatar a realidade. O cenário encontrado na zona é, de facto, assustador. Mais do que algumas residências, há mesmo um bairro com centenas de casas ao redor da fábrica de pólvora Santa Barbara, muitas delas estão-lhe coladas à parede.

Além das casas, há numa das ruas próximas ao empreendimento, uma bomba de combustível, que funciona no interior de um contentor, uma casa de venda de gás butano e um mercado informal que concentra vários vendedores.

Devido à baixa altura do muro de vedação da fábrica, que contém apenas 12 fiadas, as crianças residentes nos arredores facilmente pulam para o interior da instituição, onde caçam pássaros e apanham material metálico para comercializar nas casas de compra do produto.

Esta situação, segundo contou o morador Kinanvuide Miguel, residente na zona há 14 anos, deu lugar a um incidente que culminou com a morte de duas crianças. O morador, que admitiu estar alheio ao que se passou no Líbano, salientou que o facto ocorreu em 2007, quando um grupo de crianças decidiu retirar do interior da fábrica de pólvora um objecto metálico, achando ser valioso, para levar à casa que vende metal.

Posto lá, prosseguiu, depois de ser mal manuseado, o objecto explodiu, tendo provocado a morte de dois meninos. “Apesar dessa triste situação, ainda hoje, crianças que continuam a pular o muro da fábrica para caçar pássaros e procurar material de alumínio, cobre e madeira para vender”, frisou.

Kinanvuide Miguel, cuja casa está a escassos metros da fábrica de pólvora, referiu que, em 2011, um outro grupo de crianças ateou fogo no interior, na altura completamente coberto de capim, tendo criado chamas que por pouco se alastravam às partes mais sensíveis da fábrica. “Os bombeiros tiveram que aparecer para apagar o fogo”, recordou.

O morador acrescentou que, 2009, parte da fábrica estava sem vedação, cenário que propiciava a fácil entrada das crianças no seu interior. “Até mesmo nós, os mais velhos, fazíamos da fábrica caminho para atingir uma outra parte do bairro”, aclarou. José Panda, outro morador do bairro, ao qual foi dado o nome “Pólvora”, devido à instalação da empresa no local, contou que, depois de ouvir o que se passou no Líbano, o seu sono deixou de ser profundo.

“Está a ser difícil apanhar mesmo um sono profundo, pois vivemos ao lado de uma empresa que trabalha com material explosivo. Estamos a correr um grande risco”, admitiu. José Panda revelou que, há muitos anos, ocorreu uma explosão dentro da fábrica, que chegou a estremecer a terra. “A população não conseguiu identificar o que, realmente, se passou, mas foi uma grande explosão”, contou.

A Fábrica de Pólvora Santa Bárbara, que responde, actualmente, pelo nome de “MAXAM CPEA”, está entre os bairros “Pólvora”, no município do Cazenga, e Malueca, em Cacuaco. A pólvora, ensina a Química, é uma mistura explosiva de nitrato de potássio, carvão e enxofre, que deflagra através de chama, faísca ou filamento incandescente.

Director descarta risco

O director dos Recursos Humanos da empresa MAXAM – CPEA ANGOLA SA, inicialmente denominada CPEA – Companhia de Pólvoras e Explosivos de Angola, Silva Sebastião, disse que a empresa é angolana de direito privado, que vem exercendo a actividade de forma ininterrupta desde 1959. Tem como objecto social o fabrico e comercialização de explosivos industriais e sistemas de iniciação (Acessórios de Tiro), bem como a importação e venda de cartuchos para caça e tiro desportivo.

O responsável descartou a possibilidade de se registar, na zona em que se encontra, um episódio semelhante ao ocorrido no Líbano. Disse terem uma área de Qualidade e Ambiente, que faz uma gestão cautelosa do armazenamento do nitrato de amónio, com base nos procedimentos corporativos e padrões internacionais, em estreita articulação com a área de Segurança, visando a prevenção de riscos e/ou acidentes associados à natureza do produto.

“Por exemplo, auditorias internas e externas, planos mensais de inspecção e limpeza de armazéns, sistema de ventilação 100% natural e pessoal especializado para carga e descarga”, salientou. 

Silva Sebastião acrescentou que usam, como mecanismos de segurança, política corporativa de saúde e segurança ocupacional, que visam garantir a integridade física das pessoas e instalações, presença permanente do efectivo do PSOE (Polícia de Segurança de Objectivos Estratégicos) destacado na fábrica, inspecção e sensibilização da comunidade por parte da Brigada de Protecção Civil, simulacros regulares para testar a eficiência dos meios de resposta a situações de emergência, armazém preparado em conformidade com os critérios de conservação do fabricante e matéria-prima armazenada em local que não permite a concentração de calor.

A este pacote, disse, acrescenta-se, igualmente, o armazenamento iluminado pela luz natural, sendo expressamente proibido fazê-lo em instalações eléctricas ou luz artificial, procedimento de consumo que proíbe manter em stock matéria-prima por mais de um ano e inspecções de segurança regulares, para aferir o estado do produto, aspectos inerentes e prazo de validade.

“Bomba flutuante” explodiu em Beirute

Pelo menos, 137 mortos, dezenas de desaparecidos e 5.300 feridos residentes sem tecto era o balanço, até ontem, da explosão que, terça-feira, sacudiu a capital do Líbano. Armazenadas no porto de Beirute, 2.750 toneladas de nitrato de amónio, químico industrial utilizado, quer como fertilizante, quer como carga explosiva para a indústria mineira, terá sido o material que levou à explosão e à tragédia.

O Pavilhão do MV Rhosus era moldavo, tripulação russa e ucraniana, propriedade de um empresário russo radicado no Chipre. Autoridades sabiam do perigo que a carga representava, mas nada fizeram durante anos. Oriundo de Batumi, na Geórgia, o MV Rhosus tinha a Beira, Moçambique, como destino.

Mas quer tenham sido “dificuldades técnicas”, como disseram os advogados que representaram os marinheiros, quer tenha sido para recolher mais carga, como disseram à CNN, o facto é que o navio ficou ao abandono. O paradeiro do Rhosus , que outrora foi apelidado de “bomba flutuante”, pelo Maritime Bulletin, publicação online especializada em asuntos marítimos, é agora desconhecido.

E a respectiva carga acabou num armazém. Segundo a CNN, depois de o cargueiro, de bandeira moldava, ter acostado na Grécia, para reabastecer, o proprietário do navio, Igor Grechushkin, informou o capitão que tinha ficado sem dinheiro, pelo que teriam de recolher carga adicional para cobrir os custos de viagem, o que os levou a fazer um desvio para Beirute.

Na capital do Líbano, o MV Rhosus foi impedido de prosseguir pelas autoridades portuárias locais, devido a “graves violações na operação de um navio”, taxas em dívida ao porto e queixas apresentadas pela tripulação russa e ucraniana, segundo o Sindicato dos Marítimos da Rússia à CNN. 

O empresário russo, que residia no Chipre, declarou a Teto Shipping falida, foi depois acusado pelo capitão Boris Prokoshev de ter abandonado o navio e a tripulação – uma “bomba flutuante” deixada à porta da capital do Líbano.

Vários credores, segundo os representantes legais da tripulação, apresentaram igualmente queixas. Confrontados com falta de víveres, parte da tripulação (seis) teve ordem para regressar a casa, enquanto o capitão, russo, e três tripulantes, ucranianos, tiveram de permanecer meses no navio.

Um juiz acabou por dar autorização aos quatro para desembarcarem e serem repatriados. E como o navio ficou ao abandono e a carga era perigosa, foi decidido removê-la a carga para um armazém do porto, o que aconteceu em Novembro de 2014.

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