Cento e treze trabalhadores da Sonangol Pesquisa e Produção, S.A. propuseram uma acção judicial contra o Banco Angolano de Investimentos (BAI) no Tribunal Provincial de Luanda no passado mês de Novembro de 2019. A Sonangol é a maior accionista do BAI, com 9 por cento do capital, e o seu principal sustentáculo financeiro.
O objecto da acção é estranho e demonstra a forma como aparentemente as grandes instituições angolanas, seja a Sonangol, seja a banca, desconsideram o povo. Angola continua a ser um país sem povo, onde as elites se sentem livres de fazer o que querem, esquecendo-se do seu dever essencial de cidadania para com os outros, especialmente para com os concidadãos mais desfavorecidos. Além disso, a situação que a seguir descrevemos pode indiciar que a Sonangol tentou financiar indirectamente o BAI, acabando por desistir devido às suas reconhecidas e públicas dificuldades financeiras, daí resultando os problemas com os trabalhadores.
O essencial do caso descreve-se em poucas linhas. A Sonangol Pesquisa e Produção, S.A. assinou em 2007 um protocolo com o BAI. Esse protocolo tinha como objectivo ajudar os trabalhadores da Sonangol a adquirirem casa própria, criando uma série de benefícios para que estes obtivessem empréstimos junto do BAI. Entre esses benefícios, contava-se uma taxa de juro bonificada extremamente atractiva. Com base no protocolo, vários trabalhadores, entre eles os 113 aqui mencionados, acorreram ao BAI para contrair o respectivo empréstimo e comprar casa. Cada um deles acordou e assinou um contrato individual de empréstimo à habitação (que em linguagem jurídica se chama contrato de mútuo).
Ora, acontece que as taxas de juro aplicadas pelo banco no decurso da operação eram mais altas que as taxas previstas no protocolo. Consequentemente, a taxa de juro favorável deixou de ser assim tão favorável. A isto acresce que em 2010 a Sonangol acordou com o BAI uma modificação da taxa de juro prevista no protocolo. Alteração que se repercutiu directamente nos trabalhadores.
Em resumo, os trabalhadores acabaram por pagar uma taxa de juro muito mais elevada do que se estabelecia no protocolo ao abrigo do qual tinham decidido assinar o contrato de mútuo. Sentem-se agora defraudados e pretendem receber uma indemnização compensatória.
Vamos tentar perceber os detalhes desta operação.
O protocolo entre a Sonangol e o BAI é um acordo bastante complexo entre as partes, que obviamente obriga uma em relação à outra. A questão de saber se também obriga as instituições face aos eventuais trabalhadores aderentes é de resposta mais intrincada e insere-se na chamada eficácia externa das obrigações, tema que não vamos analisar aqui. Para obviar a estas dificuldades, cada trabalhador realizou um contrato individual com o banco. Temos de analisar estas duas peças – protocolo e contrato – para alinhavar algumas conclusões.
O protocolo, como referido, é complexo, e para o assunto que nos interessa tem relevo a cláusula 12.º, que imperativamente estabelece que “cada empréstimo vencerá juros à taxa indexada à Libor (180 dias) acrescida de um spread de 2% ao ano, sujeita a revisão regular e às condições de mercado”. Infelizmente para os trabalhadores, esta cláusula “dá com uma mão e tira com a outra”, pois se na parte inicial estabelece determinadas condições específicas, na segunda submete-as ao conceito vago de “condições de mercado”.
Contudo, é a cláusula 9.ª que levanta interrogações. Aí se estabelece que a Sonangol pagará 50% dos juros imputados aos seus trabalhadores pelo banco. O BAI encontrou aqui um financiador parcial para as suas actividades mutuárias, e a Sonangol, mais uma vez, surge como financiadora, desta vez da aquisição de casa pelos seus trabalhadores. Importa perceber se a Sonangol pagou efectivamente esses 50%, ou se os “aumentos” da taxa de juro aplicada aos trabalhadores derivaram de qualquer mudança de atitude da Sonangol. Para isso, temos de ler os contratos individuais.
Num contrato individual de 2012 que analisámos, deparamos inicialmente com um facto relevante. Não existe no contrato qualquer menção ao protocolo. As partes optaram por desligar contratualmente o mútuo do protocolo. Este poderá estar subjacente como elemento da formação da vontade, mas bizarramente não surge mencionado no contrato. Tal não afasta a aplicação do protocolo, mas torna-a mais difícil. E, como referimos, o protocolo é suficientemente vago para permitir uma taxa de juro sujeita às condições de mercado e não obrigatoriamente Libor (180 dias) + 2%.
No caso do contrato que analisámos, a taxa de juro contratada foi de 10% ao ano. A taxa Libor a 180 dias em 2012 com referência ao dólar norte-americano, que é aquela a que presumivelmente a cláusula 12.ª do protocolo se refere, era de 0,687%. Portanto, a taxa de juro aplicada ao contrato deveria ser de 2,687%, e não de 10%. Poderá o banco vir dizer que as condições de mercado se alteraram em 2012 e por isso não haveria possibilidade de aplicar essa taxa. É possível que, numa interpretação analítica dos documentos – protocolo e contrato – o banco tenha razão.
Mas existem aqui duas questões que fazem de tudo isto uma injustiça flagrante. Em primeiro lugar, não resulta do contrato se a Sonangol assegurou ou não 50% da taxa de juro. De acordo com o protocolo, deveria ter assegurado. Assim, o trabalhador deveria ter pago uma taxa de juro de 5%, e não de 10%. O que pagou efectivamente? O que foi suportado pela Sonangol? Ou a Sonangol ainda foi pagar acima destes valores? São questões em aberto.
O que transparece desta operação é que o BAI montou um esquema financeiro para reforçar os seus proventos através da Sonangol e que no fim de contas quem acabou por suportar as “engenharias” foram os trabalhadores.
A segunda questão prende-se com o abuso de direito ou má-fé que transparece nesta operação. Os trabalhares foram levados num engodo: a taxa de juro favorável. Ao assinarem o contrato, sem lerem a totalidade das regras, presumiram que estavam a beneficiar do protocolo na sua parte mais benéfica, e ninguém lhes explicou que não era assim. De alguma forma, pode dizer-se que foram enganados.
Portanto, não está em questão a interpretação de um protocolo ou de um contrato, mas a aplicação de um princípio geral de direito. Partes mais fortes e com mais conhecimentos, como são a Sonangol e o BAI, aproveitaram-se da falta de conhecimento da parte mais fraca para lhe imporem um contrato que não é aquilo que o mais fraco pensava.
Determina o artigo 334.º do Código Civil: “É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.” É o caso flagrante nesta situação. Cobrar os juros acima daqueles que estavam expressos no protocolo é ilegítimo, pois viola a boa-fé dos trabalhadores e os bons costumes numa sociedade assente na dignidade da pessoa humana. Duas grandes corporações acenam com uma bandeira aos trabalhadores e depois melifluamente tiram deles vantagem. Trata-se de verdadeiro abuso de direito, e há que corrigir rapidamente a injustiça.