A cultura angolana vive uma das piores semanas. Dois dias depois do “duro golpe” da morte de Waldemar Bastos, por doença, acontece outro infortúnio no mundo da música. Morreu, ontem, em Luanda, na Clínica Girassol, vítima de doença, Carlos Burity, um dos impulsionadores do semba.
Aos 67 anos, Carlos Burity, um dos “pesos-pesados” do cancioneiro nacional, deu entrada ontem, às 7h00 da manhã, na Clínica Girassol, com uma paragem cárdio-respiratória, num quadro clínico grave, que mesmo com os primeiros socorros prestados imediatamente não foi possível reverter a situação.
O médico de serviço Rui Africano disse ter sido um processo de recuperação bastante longo, onde foram feitos várias tentativas para preservar a vida do cantor. No final da quarta tentativa houve uma “retoma da actividade cardíaca”, de apenas alguns minutos. “Depois de uma hora, o paciente não resistiu”, lamentou.
História
Carlos Fernandes Burity Gaspar se iniciou na música em 1968 e gravou, em 1974, sucessos como “Ixi Iami” e “Recado”. Natural de Luanda, cidade onde nasceu em 1952, Burity integrou, em 1968, a formação pop–rock “Cinco mais um”, com Catarino Bárber e José Agostinho. Em 1974 grava, com o Grupo Semba, o primeiro single.
Neste mesmo ano dividiu o palco com David Zé e Artur Nunes, num espectáculo realizado na Cidadela Desportiva de Luanda. Os singles “Inveja” e “Memória de Nelito” surgiram no mercado em 1975, enquanto o disco “Especulador”, que marcou a entrada do músico no universo dos temas de intervenção, surgiu em 1976.
Em 1983, Burity junta-se ao “Canto Livre de Angola”, um projecto do cantor brasileiro Martinho da Vila, que levou ao Brasil nomes como Filipe Mukenga, André Mingas, Dina Santos, Pedrito, Elias dya Kimuezo, Rebita do Mestre Geraldo, Mamukueno e Joy Artur, acompanhados pelo agrupamento Semba Tropical, e participou, integrado no mesmo projecto, na gravação do LP “Semba Tropical in London”, interpretando, com assinalável sucesso, os temas “Mon’ami” e “Tona kaxi”.
O álbum “Carolina” surge em 1991 e três anos depois, em 1994, surge com “Ilha de Luanda”, CD que sai com a chancela da editora Vidisco. Ao longo da carreira conseguiu ainda colocar no mercado muitos outros discos, entre os quais “Wanga”, “Ginginda”, “Massemba”, “Zuela o Kidi”, “Paxi Iami” e “Malalanza”.
Última homenagem
Após a confirmação oficial da morte do músico, várias personalidades da vida artística e social do país reagiram de forma incrédula e com espanto ao acontecimento. Alguns lembraram que ainda em Dezembro do ano passado foi feito uma homenagem ao cantor, no projecto Duetos N’Avenida, na Casa 70, em Luanda, com as cantoras Patrícia Faria e Gersy Pegado a actuarem com Carlos Burity.
Neste espectáculo, por sinal o último de grande visibilidade do músico, que participou, apesar de estar adoentado, foram interpretados vários sucessos do cantor, uma viagem que privilegiou os sucessos dos últimos 20 anos. Figueira Ginga, da Zona Jovem, a organizadora do último espectáculo em homenagem ao cantor, não queria acreditar na notícia.
“É difícil descrever… perdemos um ícone do semba”, disse, ontem, ao Jornal de Angola. Para o promotor de eventos fica um sentimento de “mágoa, por não ter sido explorado, devidamente, muito da vida e obra do músico”. Quando contactámos Carlos Burity, para fazer parte do último espectáculo do Duetos N’Avenida, recordou, já se encontrava incomodado, mas mesmo assim aceitou ao convite depois de alguma persistência.
Revolução
Incrédula com a notícia, Gersy Pegado considerou Carlos Burity como uma figura incontornável da música angolana que muito contribuiu para a afirmação e preservação do semba. De acordo com a cantora, “foi um privilégio enorme poder fazer parte do elenco escolhido para interpretar canções do malogrado no Duetos N’Avenida”, disse.
Dividir o palco naquele momento com o Carlos Burity e estar associada à sua homenagem foi, para Gersy Pegado, enquanto artista da nova geração, “um feito único e um grande reconhecimento. Sinto-me honrada em poder fazer parte da última grande homenagem a Carlos Burity”.
Por sua vez, Patrícia Faria destaca a figura de Carlos Burity como um cantor “revolucionário” que sempre acompanhou as novas tendências, sem nunca ter perdido a originalidade patente nas várias obras no mercado. “Ele foi inovador, modernizador e revolucionário no campo do semba. Todas as suas obras foram sucessos indiscutíveis, tornando-o um dos melhores da sua época”, destacou.
O país e o mundo, continuou, “acabam de perder mais uma biblioteca viva que muito ainda tinha para transmitir às gerações vindouras”. Como cantora, lembrou, ter partilhado com Carlos Burity várias vezes o mesmo palco, mas que a última homenagem teve um sabor especial, por ter interpretado apenas clássicos do malogrado.
O intérprete
Alguns dos melhores sucessos interpretados por Carlos Burity, como “Quimbangula”, “Santo António”, “Gingonça do Macaco” e “Akwa Ngongo” tiveram a composição do cantor Xabanu. A morte do músico representa, para Xabanu, o fim de uma boa relação de amizade. “Era um dos compositores com quem partilhava várias ideias, sempre que a ocasião permitisse”.
O “rei” Elias dya Kimuezo, que também partilhou vários momentos dentro e fora dos palcos com o malogrado, considera uma perda inigualável para a cultura nacional, em geral, e o semba, em particular. “A música angolana fica mais empobrecida. Carlos Burity era amigo de todos. O conheci por intermédio do compositor Xabanu, no Rangel, há mais de 30 anos”, contou.
Espiritualidade
Dom Caetano lembrou que a última actividade em que partilhou o palco com Carlos Burity foi em Julho de ano passado, em Lisboa, num espectáculo realizado numa casa nocturna. “Não é fácil descrever a sua figura. Teve uma carreira com um percurso invejável e conseguiu ter sempre grandes sucessos ao longo da carreira.
Na opinião de Dom Caetano, lidar com Carlos Burity era, sobretudo, saber compreender a sua forma de ser e estar na vida. Apesar do espiritualismo e superstição estar muito presente na sua vida, considera-o como “uma figura incontornável da música angolana, com uma obra que precisa ser melhor divulgada às futuras gerações”.
Ícone da cultura
O presidente de direcção da União Nacional dos Artistas e Compositores (UNAC), Zeca Moreno, disse que a classe artística nacional fica mais pobre com a perda de um importante ícone da cultura e da música urbana angolana, acrescentando que a UNAC lamenta profundamente da morte de Carlos Burity.
Com grande consternação, disse, a UNAC tomou conhecimento da triste ocorrência que abalou profundamente a classe, tendo referido que Carlos Burity foi um dos membros proclamadores da instituição. “Em nome dos artistas angolanos filiados, a UNAC endereça à família enlutada as mais profundas condolências”.
Entre os nomes que se associam aos sentimentos de pesar consta também o do gestor do Centro Cultural e Recreativo Kilamba, Estêvão Costa, onde o malogrado actuou em Novembro de 2013, quando foi homenageado no programa “Muzongué da Tradição”. O gestor recordou o malogrado como sendo uma das figuras mais referenciadas da música angolana, a cantar unicamente o semba.
A sua música, lembrou, é ouvida frequentemente em festas de diferentes segmentos etários. “Mal nos recuperamos da notícia da morte do cantor Waldemar Bastos e agora mais essa infelicidade”, lamentou.